sexta-feira, 19 de maio de 2017

António Gedeão.

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Rómulo Vasco da Gama de Carvalho
 nasceu no dia 24 de novembro de 1906 e faleceu no dia 19 de fevereiro de 1997 em Lisboa. Foi professor de física e química do ensino secundário no Liceu Pedro Nunes e no Liceu 
Camõespedagogoinvestigador da história da ciência em Portugal, divulgador da ciência, e poeta sob o pseudónimo de António Gedeão.


LÁGRIMA DE PRETA

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
 
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
 
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
 
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
 
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
 
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.


O poema “Lágrima de preta” de António Gedeão transmite-nos uma mensagem profunda e uma lição cheia de humanismo. O sujeito poético vai analisar uma lágrima de preta e provar que ela é igual a qualquer outra lágrima. Esta é a ideia central do poema, onde vemos a vertente antirracista do mesmo, que poderá ser exposto em qualquer propaganda contra o racismo realizada nos dias de hoje. O poeta suscita nos leitores uma reflexão sobre o essencial e o acessório, sobre o interior e o exterior, sobre a essência e a aparência, sobre o modo como convivemos com o outro e como aceitamos a diferença.


POEMA PARA GALILEU
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios).

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te?
A ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno
às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileu Galilei!
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Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita
num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileu,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar
(que disparate, Galileu!)
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileu?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa
ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileu,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos,
hirtos,
de toga e de capelo
a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível
que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a civilização.

Tu, embaraçado e comprometido,
em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites
e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas
(parece-me que estou a vê-las),
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim,
que sim senhor,
que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado
e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite
louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo,
na própria intimidade do teu pensamento,
(livre e calma),
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.

Ai, Galileu!
Mal sabiam os teus doutos juízes,
grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo,
empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.

Tu é que sabias, Galileu Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer,
homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso, estoicamente,
mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias,
a todos os contratempos,
enquanto eles,
do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

Pedra Filosofal.
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.


O título do poema – Pedra Filosofal – remete para a alquimia (uma substância que, segundo a lenda, se adicionava aos metais pobres para se transformarem em ouro). Assim, este título, associa o sonho humano à magia dos alquimistas, sugerindo que o sonho, qual pedra filosofal, transforma em ouro as fraquezas e as pequenas ambições humanas.
O sonho faz parte da vida dos seres humanos, é tão frequente, concreto e definido como uma pedra, um ribeiro, os pinheiros, as aves... fazem parte da Natureza. Estas comparações que surgem no início do texto sugerem que o sonho é uma coisa simples, mas, ao mesmo tempo, complexa, porque é muito difícil de definir; apontam ainda o quanto os sonhos são abstratos e subjetivos, podendo, no entanto ser transformados em algo tão concreto e definido como outra coisa qualquer.
 

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