quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Um Auto de Gil Vicente: estrutura dramática e ideológica.

O auto de Gil Vincente é representado na corte de D. Manuel I por ocasião do casamento de D. Betariz com o duque de Saboia surge, portanto, como o centro estruturador da ação, à volta do qual se constrói  a intriga dos amores de Bernardim e da Infanta, ciumento aglutinador dos vários conflitos que compõem a ação. O drama de Garrett é a própria representação do auto de Gil Vicente, tornando-se assim o teatro metáfora da própria vida. Garrett tenta ressuscitar o teatro português: reaproximá-lo, povoá-lo de factos reais e de pessoas reais, dotadas de sentimentos comuns, como o amor, a paixão, o ciúme, a suspeita, o orgulho... É o demiurgo, o homem que vive para a sua arte, portador da pureza da única classe social que, segundo alguns românticos, está ainda próxima da natureza: o povo. O amor surge como valor supremo e móbil determinante da conduta das personagens centrais. A função pedagógica do drama, sabiamente veiculada no doseamento do dramático e do burlesco, do apelo ao ideal e do chamamento à realidade num quadro referencialmente desligado da própria realidade contemporânea mas saturado de símbolos que remetem para essa mesma realidade.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Camilo Pessanha.

Resultado de imagem para camilo pessanhaCamilo de Almeida Pessanha nasceu como filho legítimo de João António de Almeida Pessanha, um estudante de direito de aristocracia, e Maria Espírito Santo Duarte Nudes Pereira, sua empregada, em 7 de setembro de 1867,na Sé Nova, Coimbra, Portugal. O casal teria mais quatro filhos.
Camilo Pessanha criou uma arte meticulosa no tratamento musical e evocativo do verso que muito lembra a de Verlaine. Os seus sonetos, sobretudo, são lançados com um cuidado extremo em eliminar quaisquer inflexões previsíveis da expressão sentimental. Não se trata do amor, da esperança, da desilusão, da dor, do desejo, dos grandes românticos encarecidos.

A poesia de Camilo Pessanha não resiste apenas à crítica biografante, mas também ao estreito historicismo literário.
Camilo Pessanha foi o poeta mais autenticamente Simbolista de Portugal, e um grande inovador da poética de seu país, cuja influência se estende até os modernistas da geração Orpheu, sobretudo em Fernando Pessoa. Afastou-se do discursivismo neoromântico dos poetas do seu tempo (Antônio Nobre, Augusto Gil, Afonso Lopes Vieira) e inovou a escrita poética, incorporando procedimentos próximos aos do decadentismo de Verlaine, em especial no que se refere à aproximação entre a poesia e a música.
Apresentando uma visão extremamente pessimista de mundo, a obra poética de Camilo Pessanha sugere uma visão de mundo sobretudo marcada pela ótica da ilusão e da dor.

Simbolismo
O Simbolismo é um movimento literário que surge em finais do século XIX e que tem por base o conceito de símbolo. É uma corrente que reage contra o positivismo científico, o materialismo, a disciplina e o realismo parnasianos. Procura a espiritualidade, a transcendência física, a imaginação, proclama o ideal (parnasiano) da arte pela arte e afirma-se sobretudo na poesia (a poesia pela poesia). A poesia de Camilo Pessanha reúne os aspetos mais marcantes da escola simbolista. Aliado ao conceito de símbolo, encontramos a arte da sugestão que em Pessanha se traduz na utilização da técnica impressionista, na imagem visual e sonora, com a finalidade de sugerir sensações e convidar o leitor a interpretar estados de alma

Interrogação
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar, 
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo; 
E apesar disso, crês? nunca pensei num lar 
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. 
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos. 
Nem depois de acordar te procurei no leito, 
Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio 
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca. 
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio 
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo.
Eu não sei que mudança a minha alma pressente... 
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço, 
Que adoecia talvez de te saber doente.

 A mulher parece ser sobretudo uma fonte de apaziguamento, de refrigério («Procuro o teu olhar,/ Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo», «Mas sinto‑me sorrir de ver esse sorriso/ Que me penetra bem, como este sol de Inverno», «Passo contigo a tarde e sempre sem receio/ Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.»), mas não inspira nem a intenção de formar uma família («nunca pensei num lar/ Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.»), ou paixão lacrimosa e romântica («Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.») ou desejo sensual («Nem depois de acordar te procurei no leito/ Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.», «Eu não demoro o olhar na curva do teu seio/ Nem me lembrei jamais de te beijar a boca.»).

Violencelo
Chorai arcadas 
Do violoncelo! 
Convulsionadas, 
Pontes aladas 
De pesadelo...

De que esvoaçam, 
Brancos, os arcos... 
Por baixo passam, 
Se despedaçam, 
No rio, os barcos.

Fundas, soluçam 
Caudais de choro... 
Que ruínas, (ouçam)! 
Se se debruçam, 
Que sorvedouro!...

Trémulos astros... 
Soidões lacustres...
—: Lemos e mastros...
E os alabastros 
Dos balaústres!

Urnas quebradas! 
Blocos de gelo...
— Chorai arcadas, 
Despedaçadas, 
Do violoncelo
.

Este poema tem nos movimentos do arcos sobre as suas cordas a gênese de inúmeras imagens, notadamente as arquitetónicas, relacionadas com o sentimento de destruição, de ruína, de desmoronamento e de fragmentação, mais das vezes assumindo um sentido metafórico da falência e fragmentação do ser.
A música do violoncelo provoca um estado de alma ansioso, um sentimento de misteriosa tristeza. Mas este sentimento não é dado diretamente; é apenas sugerido por uma série de imagens e associações. Nada de tentar encontrar objetividade no poema: o poeta não nos afirma que fica triste, ansioso, inquieto, ao ouvir o violoncelo. Mas logo a apóstrofe «Chorai arcadas» nos revela o carácter triste da música. O poema assenta, pois, numa intuição associativa que liga o som grave do violoncelo ao sentimento de dor e de mistério.

A água estabelece uma relação com Clepsidra.    

Poveirinhos.

Poveirinhos! meus velhos Pescadores!
Na Agua quisera com Vocês morar:
Trazer o grande gorro de três cores,
Mestre da lancha Deixem-Nos Passar!


Far-me-ia outro, que os vossos interiores,
De há tantos tempos, devem já estar
Calafetados pelo breu das Dores,
Como esses pongos em que andais no Mar!

Ó meu Pai, não ser eu dos poveirinhos!
Não seres tu, para eu o ser, poveiro,
Mail’Irmão do «Senhor de Matosinhos!»


No alto mar, às trovoadas, entre gritos,
Prometemos, si o barco fôri intieiro,

Nossa bela à Sinhora dos Aflitos!
  • Análise do poema:
O tema desta composição poética são os pescadores e o seu assunto consiste no facto do sujeito poético louvar os pescadores através da enunciação do desejo de querer ser um deles. O poema tem um tom melancólico. Os recursos expressivos aqui apresentados são: a apóstrofe (''Ó meu pai''); a metáfora (''Na água quisera com vocês morar''). Apresenta um tom coloquial e um vocabulário popular. 

António Nobre.

António Pereira Nobre nasceu no Porto a 7 de agosto de 1867 e faleceu a 18 de março de 1900. É mais conhecido como António Nobre. Foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista da geração finissecular do século XIX português. O poeta trouxe a linguagem poética ao nível da fala comum, fazendo da poesia o milagre de uma conversa à lareira. Quando pensamos nos antecedentes literários desta evolução lírica, encontramo-los no lirismo quinhentista, no folclorismo de Gil Vicente, no Romanceiro e no casticismo teórico e prático dos românticos.
António Nobre, apesar da escassez do número de obras, tem de ser reconhecido, pois constitui um dos grandes marcos da poesia do século XIX e uma referência obrigatória na Literatura Portuguesa. É destacado pelo livro e as suas obras póstumas Despedidas e O Desejado, e Primeiros Versos. O poeta recusou a elaboração convencional, a oratória e a linguagem elevada do simbolismo do seu tempo, procurando dar à sua poesia um tom de coloquialidade, cheio de ritmos livres e musicalidade, acompanhado de um cenário pictórico rico e original. Nesta rutura com o simbolismo foi precursor da modernidade. Marcantes, ainda, na sua obra são o pessimismo e a obsessão da morte, o fatalismo com a sua predestinação para a infelicidade. 



De Tarde.

Resultado de imagem para claude monet campo di papaveriNaquele piquenique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.


Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpura a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

  • Análise do poema:
Edouard Manet - Luncheon on the Grass - Google Art Project.jpgÉ a representação impressionista de um cenário campestre em que se movem figuras que participam numa merenda, com especial destaque para o ''ramalhete rubro de papoulas'' que emerge do decote rendilhado do vestido de uma rapariga e contrasta, em forma e cor com a brancura dos seus seios, como ''duas roulas''. O sujeito poético estabeleceu a analogia entre o texto e uma ''aguarela'' que faz lembrar o celebre quadro Le Déjeuner sur l’herbe de Édouard Manet. Imediatamente nos impressiona a força das cores azul e vermelha, dos tons de amarelo ou dourado e da subentendida cor branca da renda e dos seios. Porém, o ponto central do quadro é a mancha vermelha (cor quente) do ramalhete das papoulas, cuja coloração no vértice do decote, entre rendas ladeado pelos seios assume conotações de alguma sensualidade.
O poema pode dividir-se em 3 partes lógicas: a primeira quadra corresponde a uma introdução, que nos apresenta o texto como uma aguarela (palavra chave) representativa de um ''pic-nic de burguesas'' em que houve ''uma coisa simplesmente bela''; a segunda e terceira quadras descrevem o pic-nic; finalmente a quarta estrofe iniciada pela conjunção coordenativa adversativa ''mas'' corresponde á conclusão, na qual o sujeito poético faz referência à memória mais grata daquele acontecimento ''o supremo encanto'' que ficou daquela merenda: '' o ramalhete rubro das papoulas''.